A história não é bem assim. Dificilmente se poderia afirmar que Becquerel descobriu a radioatividade; e aquilo que ele de fato descobriu não foi fruto do acaso.Este capítulo mostrará qual foi o trabalho de Becquerel, o longo e tortuoso caminho que levou à descoberta da radioatividade e discutirá as dificuldades de compreensão dos fatos que eram observados. Esse episódio é muito instrutivo, por mostrar claramente como as expectativas teóricas podem influenciar as próprias observações, levando o pesquisador a ver coisas que não existem.
A radiação dos corpos luminescentes
A descoberta dos raios X suscitou quase instantaneamente um grande número de trabalhos na Academia de Ciências de Paris, e foi a principal motivação para o trabalho inicial de Becquerel. Nesse sentido, destaca-se, em particular, a hipótese levantada por Poincaré, de que havia uma relação entre a emissão dos raios X e a fluorescência do vidro de que era feito o tubo de raios X. Nas suas próprias palavras:
"É, portanto, o vidro que emite os raios Roentgen, e ele os emite tornando-se fluorescente. Podemos nos perguntar se todos os corpos cuja fluorescência seja suficientemente intensa não emitiriam, além de raios luminosos, os raios X de Roentgen, qualquer que seja a causa de sua fluorescência. Os fenômenos não seriam então associados a uma causa elétrica. Isso não é muito provável, mas é possível e, sem dúvida, fácil de verificar".
É a busca dessa relação entre fluorescência e raios X que irá levar aos estudos de Becquerel. Na verdade, de acordo com os nossos conhecimentos atuais, não existe relação direta entre a emissão de raios X e a luminescência. Mas é graças a essa pista falsa que muitas descobertas serão feitas.
Vários trabalhos relacionados com a descoberta de Roentgen foram apresentados na Academia nas primeiras sessões de 1896. Na sessão de 03/02/1896, Nodon informa que um arco voltaico não produz raios X, mas Moreau comunica que eles são emitidos pela descarga de alta voltagem de uma bobina de indução, sem a utilização de um tubo de vácuo e, portanto, sem raios catódicos. Benoist e Hurmuzescu observam que os raios X são capazes de descarregar um eletroscópio. Na outra semana (10/02/1896) aparece o primeiro trabalho destinado a testar a sugestão de Poincaré.
Nessa sessão, Poincaré apresenta à Academia um trabalho de Charles Henry. Ele testa inicialmente se o sulfeto de zinco fosforescente é capaz de aumentar o efeito dos raios X e conclui que sim: se um objeto metálico é parcialmente recoberto com uma camada de sulfeto de zinco, a radiografia desse objeto fica mais forte e nítida na região recoberta do que na região sem sulfeto de zinco. Ainda mais: utilizando a luz produzida pela queima de uma fita de magnésio, em laboratório, Henry afirma ter conseguido obter efeitos iguais aos de uma radiografia, bastando recobrir o objeto com uma camada de sulfeto de zinco. A hipótese de Poincaré parecia estar confirmada.
Na semana seguinte (17/02/1896), entre a já usual profusão de estudos sobre os raios X, surge um trabalho de Niewenglowski que confirma e amplia os resultados de Henry. Ele utiliza outro material fosforescente - o sulfeto de cálcio. Eis sua descrição:
"Tendo envolvido uma folha de papel sensível ordinário (papel fotográfico) com diversas camadas de papel agulha negro ou vermelho, coloquei acima dela duas moedas e recobri uma das metades (da folha) com uma placa de vidro com pó fosforescente (sulfeto de cálcio). Depois de quatro ou cinco horas de exposição ao Sol, a metade do papel sensível que havia recebido diretamente as radiações solares havia permanecido intacta e não apresentava nenhum sinal da moeda colocada acima dela, indicando assim que o papel negro ou vermelho não havia sido atravessado pela luz. A metade que só recebia os raios solares através da placa fosforescente estava completamente enegrecida, exceto pela porção correspondente a uma das moedas, da qual foi produzida uma silhueta branca sobre (um fundo) negro.
Colocando apenas uma camada de papel vermelho fino, permitindo a passagem dos raios solares, constatei que a porção do papel sensível que só recebia as radiações solares após sua passagem pela camada fosforescente enegrecia muito mais rapidamente do que a outra".
As observações de Niewenglowski corroboravam as de Charles Henry: os materiais fosforescentes pareciam emitir raios X, quando iluminados. Ainda mais: Niewenglowski estuda o efeito da fosforescência do sulfeto de cálcio colocado em um local escuro, depois de ter recebido a luz do Sol, concluindo que também nesse caso o material continuava a emitir radiações capazes de atravessar o papel negro:
"Pude também observar que a luz emitida pelo pó fosforescente, previamente iluminado pelo Sol, na obscuridade, era capaz de atravessar várias camadas de papel vermelho e obscurecer um papel sensível que dele estava separado por essas camadas de papel".
Passa-se mais uma semana. Na sessão de 24/02/1896, Piltchikof anuncia que, utilizando uma substância fortememente fluorescente dentro do tubo de Crookes, no local onde os raios catódicos atingem a parede de vidro, observou um grande aumento da intensidade dos raios X, permitindo a realização de radiografias em 30 segundos (anteriormente, eram necessários vários minutos). A sugestão de Poincaré já estava, portanto, resultando em importantes aplicações técnicas. Todos esses resultados espantarão a qualquer físico moderno. Não se conhece, atualmente, nenhum efeito semelhante a esse descrito por tais autores. As experiências não deveriam ter proporcionado os resultados observados. O que aconteceu? Não se sabe.
Nessa mesma sessão da Academia, aparece o primeiro trabalho de Henri Becquerel sobre o assunto.
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